Conto da vida moderna: Ébria,a miúda sóbria por amor

19:57

Ébria, assim que tinha um tempo livre, punha-se ébria. Só assim é que conseguia afogar mágoas e espantar defuntos. Contudo, mantinha um talento que lhe era inato: era sóbria o suficiente para iludir, fosse quem fosse.
Sentada no bar, o cheiro a whisky arrastava-se pela conversa presa que tentava soltar da sua boca. Sozinha, descascava um amendoim com uma certa dificuldade, agravada pela artrose súbita que lhe atacava os nódulos dos dedos, efeito secundário comum do Jack Daniel. Recorria por socorro aos dentes, mas acabava por esmagar todo o conteúdo e elevá-lo como se de uma apoteose se tratasse.
Nisto, chega um homem de casaco comprido e de nariz avermelhado. Ao entrar no bar convida o frio a acompanhá-lo, que sem querer, espalha uma lufada de ar fresco. Senta-se ao lado de Ébria e pede uma Água das Pedras. Fica no silêncio. Ela tenta focar a sua imagem, mas ao invés de reparar naquele individuo singular fica intrigada por não pedir álcool. Decide arriscar. Mas em pensamento, oh psst tu aí bebe um copinho que ficas já mais quentinho... A voz afável vira-se para Ébria e desembucha. Estou sóbrio há sete meses e é assim que quero ficar. Palavras certas no tempo errado.
Eis que se dá uma epifania ao restante cérebro de Ébria que tenta desenvolver um diálogo assertivo sem grandes atropelos linguísticos. Consegue, aos poucos, compor a sua imagem de pessoinha ordinária e transforma-se tal metamorfose de borboleta na mulher sóbria que é. O estado de alcoolemia invade o coração do homem de nariz avermelhado, que se deixa levar pelo néctar de sedução. Minuto após minuto ele encontra-se extasiado. Babado. De queixo caído. Bêbado pelo encanto de Ébria. Ela, ao fim de umas horas de conversa, levanta-se. Caminha, segura e recta. Ele segue-a. Tonto e em zigue-zagues sem conseguir distinguir quantas Ébrias é que se deparam diante dele. Não percebe a confusão do seu cérebro. O empregado, mero espectador, julgou ter servido errado. Eu dei-lhe água das pedras, como é que é possível?
Num enrolar da língua, pede para lhe deixar o seu contacto. Ela despreza-o. Curou de novo a bebedeira. E no fim de contas, foi ele que ficou de ressaca.

Sushi do Dia

A nossa visão só se torna clara quando conseguimos olhar para dentro de nós. Quem olha para fora, sonha; quem olha para dentro, desperta.
Carl Jung

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