a genialidade da miséria

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Hoje falava sobre quem é génio para mim. Todos eles, tiveram traumas. Pesados passados, transformados em obras de arte, perpetuadas. A destruição da minha personalidade, deu-se, no meu estágio de edificação. A perda, essa desgraçada, fitou desde cedo os meus dias. As insónias, as longas noites, noites que nunca terminavam, induziam-me um pânico que só acalmava quando agarrava à mão de alguém. Lembro-me de andar pelo escuro. Escuro absoluto, inanimado. Via coisas. Sombras. Chorei baixinho, anos a fio. Guardei histórias, desumanas. Carreguei-as comigo, não as dava a ninguém. Eram o meu fado. Até ter idade suficiente e perceber que o mundo é imundo. Repleto de pessoas más, recheados de merda, atingíveis a pessoas genuínas, ao ponto de desejar morte. Mas nunca a minha. Hoje, em breves momentos, ainda tenho essa repulsa. É, nojento! Sem psiquiatras, juntei as minhas peças. Vinguei-me na minha superioridade, menosprezo quem não tem coração, rasgo da minha vida essas marcas de atrocidade.
Ele ficou um esqueleto, de magro, estendido naquele quarto. O padre benzeu-o. Mal respirava. Tinha tubos pelo nariz. As máquinas ajudavam-no. Não me queriam deixá-lo ver. Eu percebia, tinha doze anos, mas percebia. O fim. Essa doença. Essa puta. Levou-o. Aos bocadinhos, pura maldade, pura tortura. Queimou-o, desfez os sonhos de menino, a vontade de voltar a andar. Merda!, que coisa tão simples, as pernas servem mesmo para andar, e ele chorava de dores e não andava. Eu, por causa das insónias, ficava sentada ao seu lado. Tinha frio, muito frio, nada o aquecia. Em momentos de alívio, gravava comigo os meus primeiros programas de rádio. Dizia-me «loira burra», de Gabriel o Pensador. Riamos horas a fio. Coisa de miúdos. Falava-me das suas namoradas, a quantidade de miúdas que o esperavam na escola ou nas férias em Luanda. Depois voltavam as náuseas, os vómitos, a constante indisposição, e a dor interminável. Disseram-me, já não o voltas a ver.
Dois meses depois, enterrei-o. No cemitério de Benfica, entre pássaros, ciganos de vozes desgarradas de uma dor profunda que faziam fileira de um e de outro lado dos jazigos trajados a negro, e nós, pelo meio em procissão a erguer o caixão. Recusei roupa preta. Vesti uma camisa aos quadradinhos, azul e branca. Deitei-a fora. Não vi essa porca miséria de baixar o caixão pela terra, quem se lembra de tamanha barbárie, de deixar ali alguém, comida para vermes, com terra a cobrir a perda. Não se cobre, não se tapa. Cresce connosco. Arranca lágrimas de saudade de um corpo inconsolado, sentimentos pedrados.
Dizia eu. Considero os grandes génios, pessoas sofridas. Marcadas. A mim, só me falta ser excêntrica. Porque pela podridão miserável, essa vadia, já a tenho de sobra.

Sushi do Dia

A nossa visão só se torna clara quando conseguimos olhar para dentro de nós. Quem olha para fora, sonha; quem olha para dentro, desperta.
Carl Jung

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