Sem remetente
23:22Querida Vida,
Pensei muito antes de te escrever. Pensei e repensei e aqui estou. Perante as próximas palavras tenta compreender aquilo que quero, já que até hoje nunca entramos em concordância.
Começo pelo meu passado entre os Alpes. Creio que é a minha primeira grande frustração pessoal. Lembro-me de desmontar os móveis, em encaixotar tudo, arrumar os meus brinquedos e entrar no BMW bordeaux do meu pai e nunca mais voltar ao jardim da minha casa. Lembro-me de chorar (por essa altura ainda sabia como extrair lágrimas do meu saco lacrimal) e de ter a noção que ali ficavam os meus bons anos de infância.
Depois enfiaste-me em Coimbra. Que pesadelo! Da aldeia Suíça passei para uma cidade-aldeia o que foi muito traumatizante. Não percebia a língua portuguesa, as pessoas cheiravam a mofo e a neve nunca chegava na noite de Natal. Acho que por esta altura, também chorava. Só o deixei de fazer ao perceber que quem tinha verdadeiros motivos para chorar era o meu primo, que dia após dia, lutava no hospital. Aprendi a sair da escola sozinha e a enfiar-me no autocarro para o ver. Aprendi a ter confiança, a erguer a cabeça e com ele, aprendi a rir sem parar. Por esta altura, ao perceber as histórias dos outros, já tinha decidido que ia ser jornalista. Ainda hoje guardo a cassete, minha e dele, do nosso programa de rádio que religiosamente gravamos ao som de Loira Burra de Gabriel o Pensador. Infelizmente, foi aos 12 anos que me revelaste como és lixada. Porque tu Vida, também acabas. Sem mais nem menos. E levas alguém... Sei lá para onde. Cabra.
Mas tu, como minha, cá continuaste. Em modo nómada lá pegamos nas benditas trouxas e depois de nada resultar nos negócios do meu pai, arredamos pé. Finalmente em Lisboa, entrei em parafuso. Caos, aviões, ambulâncias, policias, sirenes. Eu estava habituada a cabras e vacas do campo, tive que enfrentar as da verdadeira cidade. Não foi nada fácil. Na escola fui obrigada a ter aulas de música e até hoje pergunto qual a sua utilidade se não faço a mínima ideia como se toca qualquer instrumento. Enfim...
Entretanto os sensatos dos meus pais decidiram sair da grande cidade e fizeram-nos abraçar este que é o meu lar até então. Daqui não arredo pé, Vida. Aviso-te já, não te ponhas com ideias!!! Aceito algum tempo de ausência por cá, mas é aqui que hei-de firmar as minhas raízes.
Dados os 17 anos que por aqui ando muito se passou. Estudei sempre tudo nos conformes, sempre boa aluna, orgulho dos pais, trabalhei e paguei a faculdade... Como se costuma dizer, tudo de bom, portanto. Quanto aos amores nunca perdi muito tempo com eles mas quando o fiz com mil raios mais valia ter estado quieta. Mas como tu própria sabes, não fui de causar grande dor de cabeça a ninguém. Agora eis a questão, em que parte é que deixaste de me perceber? Durante a fase de adolescente em que o meu cabelo liso se transformou em rabinho torcido de porco e pus metal nos dentes? Ou quando quis ir para a Universidade privada porque considerei ter mais possibilidades no futuro profissional?
Juro que não te percebo, Vida. Tu atrapalhas-me. Nada me tem corrido como queria, nada me corre como é suposto. Para lá de Bagdad de frustração. É assim tão complicado ver que já sou adulta, vacinada e carimbada para perder a cabeça, ter oportunidades, errar nas escolhas? Para onde me levas? Põe aí as coordenadas no GPS. Adorava saber o que tens reservado para mim. Mas tudo bem se não puderes responder. Tenho é mais que ter paciência e conceber que tu Vida és mesmo assim. Sem noção. Só não percas esta minha dica, mantém-te por perto. É que, ainda que não tenha sido eu a escolher o caminho, pelo menos vou-te vivendo ao sabor do que me tiveres para dar.
Por favor, não compliques muito mais daqui para a frente. Tu no fundo sabes o que quero. Sempre fui determinada nisso, não te demores tanto a acontecer. Quando der por mim, já passaste e fiquei com tantos planos por concretizar. Esforça-te para me leres.
Tens ai o meu email, caso queiras responder. De qualquer maneira, já estou habituada ao silêncio...Whatever!
Com os melhores cumprimentos.
Da tua para sempre enquanto fores Vida,
Sushi Mata.