porque os velhos vivem só de memórias
12:24A porta, entreaberta, deixa sair o leve cheiro a abandono. Parece a mofo. Talvez seja mais intenso do que isso. Deixo-me seguir pela sensibilidade do meu nariz, farejo o trilho até à sala. Do lado esquerdo, uma mesa de ferro com perna encavalitada, tem a máquina de cozer que a mãe lhe ofereceu aos 12 anos. Disse-lhe, na altura, que servia para ter profissão. Nunca a usou. Casou-se aos 16, aos 18 perde o primeiro filho, tem aos 22 o segundo e único. Um silêncio absurdo trespassa o caixilho de madeira da janela. Ainda assim as cortinas rendilhadas flutuam pela sala. Deixam transparecer os azulejos que António lhe pintou. Desde cedo percebeu a sua mão para o engenho das tintas e pincéis. Sustentou a família, a desenhar nos pedaços de cerâmica, o dia a dia da vida de cada um. Obras de arte, dizia ele, de pulmão cheio.
Ela, lá está, como sempre, como o de sempre, sentada à espera. Deste tempo que acabe. Põe o álbum de retratos sempre a jeito. Mais um olhar, mais um pormenorizado olhar leva-a no tempo, das memórias, vitórias e sensações inglórias. Tenta, levantar-se. Não se apercebe da minha presença. Impõe a sua vontade com a ajuda da bengala, ajeita as farpelas, e arrasta-se tão devagar como o tempo que leva tempo a chegar, até à cozinha. A loiça, lascada, por arrumar, mostra que já nada lhe preocupa, nada lhe ocupa.
Aproximo-me. Silenciosa e contemplativa. Ela sente a minha presença e diz-me, já estou velha minha filha, velha.